Por Miguel Andrade Ferreira Publicado em 05 de junho de 2023
No dia 30 de maio de 2023, foi publicada a Lei n° 14.592 que, em tese, destinava-se a regulamentar o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse). Contudo, em meio as disposições específicas a este programa, foram convertidas em Lei as Medidas Provisórias 1.157/2023, 1.159/2023 e 1.163/2023.
Para o presente artigo, nos interessa a disposição previamente elencada na MP 1.159, agora nos artigos 6º e 7º da Lei n° 14.592, que dizem respeito a impossibilidade de se constituir créditos de PIS e COFINS sobre a parcela referente ao ICMS que tenha incido sobre a operação de aquisição[1].
A consequência prática dessa medida é o aumento das contribuições sociais devidas pelo contribuinte, dada a redução dos créditos passíveis de compensação com o montante do tributo apurado. Basicamente, “anula-se” o ganho que o contribuinte obteve com o julgamento do RE 574.706, que excluiu o ICMS próprio da base de cálculo do PIS e da COFINS, ao impossibilitar que, sobre o valor de tal imposto que compõe os custos / despesas da empresa, o adquirente se credite.
Contudo, entende-se que tal vedação não poderia ter sido realizada pelo legislativo, pois não só repercute na cumulatividade do tributo, como altera fundamentalmente o método subtrativo indireto de apuração de créditos ao qual o PIS e a COFINS estão sujeitos.
De início, cumpre ressaltar que a cumulação de tributos ocorre em três cenários: quando duas ou mais exações incidem sobre o mesmo fato; quando um tributo compõe a base de cálculo de outro; quando o mesmo tributo incide sobre duas ou mais etapas da cadeia produtiva / comercial de bens e serviços.
Tendo isso em vista, por motivos econômicos e tributários, o constituinte estipulou a sistemática da não-cumulatividade, obrigatória para o IPI e ICMS e opcional para o PIS e a COFINS. Conquanto, a despeito do caráter facultativo em relação as contribuições, em todos os casos buscou-se através da não-cumulatividade gravar com a exação tributária somente a riqueza gerada pelo contribuinte, mediante o abatimento ou compensação dos valores devidos com os créditos apurados.
No que diz respeito ao IPI e ao ICMS, a não-cumulatividade se operacionaliza mediante o creditamento pelo contribuinte do imposto pago / devido nas operações anteriores e que deve ser compensado com o imposto devido na operação própria. Tal método é conhecido como “Imposto contra Imposto”.
Todavia, uma sistemática diversa foi atribuída ao PIS e a COFINS, dado que tais contribuições não incidem propriamente sobre o bem ou serviço, mas sim sobre a receita bruta da empresa. Nesses casos, optou-se pelo Método Subtrativo Indireto, no qual o valor a pagar, calculado sobre a receita / faturamento, é deduzido dos créditos apurados sobre as despesas incorridas pelo contribuinte.
Em outras palavras, não ocorre o abatimento do imposto pago / devido nas operações anteriores, mas sim a aplicação de uma alíquota sobre a receita (débito do contribuinte) e da mesma alíquota sobre as despesas (crédito do contribuinte) que, quando contrapostos, chega-se ao valor efetivamente devido. Tal metodologia, inclusive, é elencada na Exposição de Motivos da MP n. 135/2003 (que instituiu a não cumulatividade para a COFINS):
- Por se ter adotado, em relação à não-cumulatividade, o método indireto subtrativo, o texto estabelece as situações em que o contribuinte poderá descontar, do valor da contribuição devida, créditos apurados em relação aos bens e serviços adquiridos, custos, despesas e encargos que menciona.
As características de tal método – veiculado expressamente nas Leis n°. 10.637/2002 e n° 10.833/2003 – mostram-se bem delineadas por André Mendes:
“A forma de apuração do PIS/COFINS é a imposto-contra-imposto, dotada, contudo, de certas peculiaridades. Os débitos são calculados pela aplicação da alíquota sobre as receitas[2], ao passo que os créditos se obtêm não mediante a compensação das contribuições pagas na etapa antecedente, mas sim pela multiplicação das despesas pela mesma alíquota[3].
(…)
Assim, calcula-se primeiramente o tributo devido para, em um segundo momento, deduzir os créditos compensáveis, obtendo-se, ao cabo dessa operação – que é realizada em conta gráfica – o quantum a pagar[4].
Em sentido similar, aponta Christiano Mendes Wolney Valente[5]:
Para essas contribuições, prevê a legislação nacional nos arts. 1º da Lei n. 10.637/2002 e da Lei n. 10.833/2003 (BRASIL, 2012) que o fato gerador e a base de cálculo são o “faturamento mensal”, assim entendido o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil. Sobre essa base de cálculo incide uma alíquota de 7,6% (sete inteiros e seis décimos por cento) para a Cofins e de 1,65% (um inteiro e sessenta e cinco centésimos por cento) para o PIS/Pasep, chegando-se ao valor do tributo devido, do qual serão descontados créditos calculados sobre as despesas e custos que os arts. 3º da Lei n. 10.637/2002 e da Lei n. 10.833/2003 elencam como dedutíveis, após a aplicação das mesmas alíquotas […]. Ou seja, o encontro da base tributável com a base creditável é intermediado pela incidência de alíquotas (forma indireta). Nesse caso, pelo fato de as alíquotas incidentes sobre a base de cálculo e sobre a base creditável serem idênticas, o efeito é o mesmo que se o tributo fosse apurado pelo método subtrativo base sobre base direto. – grifos nossos.
Por último, ainda sobre o tema, Ives Gandra Martins sustenta o seguinte:
O Método Subtrativo Indireto consiste na concessão de créditos fiscais (recursos públicos ou renúncia fiscal) calculado com base na aplicação da alíquota do tributo em referência sobre as compras autorizadas e discriminadas pela legislação tributária. Dessa forma, o referido crédito fiscal, de maneira diversa do que ocorre nos casos do IPI e do ICMS, independe de haver encargo correspondente na mesma medida, na etapa anterior da cadeia de produção e comercialização de bens e serviços[6]. – Grifos nossos.
Pelo exposto, percebe-se que o Método Subtrativo Indireto, seja este classificado dentre a metodologia “imposto contra imposto” ou “base contra base”, não se relaciona aos tributos que foram recolhidos na etapa anterior pelo alienante, como seria o caso da não-cumulatividade aplicável ao ICMS e do IPI. Assim sendo, a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS em uma etapa prévia não pode ter como consequência a proibição do adquirente de constituir créditos de PIS e COFINS sobre a parcela referente ao ICMS que compôs parte do preço da operação de aquisição.
Portanto, para a não cumulatividade do PIS e da COFINS, a despesa com determinado produto adquirido, seja para revenda ou como insumo, não se divide em preço do produto + ICMS, uma vez que, o imposto sobre circulação é repassado ao adquirente como custo da mercadoria. Melhor dizendo, para fins de recolhimento das contribuições sociais em comento, apenas para o alienante interessa discriminar tal parcela como ICMS e, com isso, destacá-la de seu faturamento tributável, uma vez que, nas etapas seguintes da cadeia econômica tal valor passa a ser um ônus econômico indissociável do preço do bem ou serviço.
Contudo, ao analisarmos a exposição de motivos da MP 1.159/2023[7], percebemos um desrespeito ao Método Subtrativo Indireto, bem como uma subversão do teor do julgado no RE 576.706, a saber:
- Essa medida tem por objetivo excluir da base de cálculo dos créditos da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins o valor do ICMS incidente na aquisição de mercadorias.
- É cediço que a Decisão do STF no âmbito do RE 574.706 com relação à exclusão do ICMS da base de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins possui repercussão geral e não afastou sua aplicabilidade em nenhuma hipótese, ou seja, em nenhuma hipótese o ICMS poderá integrar a base de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins.
- Destaque-se que o § 2º, inciso II, do art. 3º da Lei nº 10.833, de 2003, determina que não dará direito a crédito o valor da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento das contribuições. Dessa forma, se o valor do ICMS destacado na Nota Fiscal não está sujeito ao pagamento das contribuições, consequentemente não deveria dar direito ao crédito.
- Portanto, o valor do ICMS destacado na Nota Fiscal, conforme decisão do Supremo, não integra o preço/valor do produto, visto que apenas transita no caixa das empresas para depois ser recolhido aos estados. Logo, na apuração dos créditos da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins na forma prescrita no inciso I do § 1º do art. 3º da Lei nº 10.833, de 2003, deve ser efetuada também a exclusão do valor do ICMS destacado na Nota Fiscal de aquisição[8]. – Grifos nossos
Os pontos da exposição de motivos da MP 1.159/2023 destacados acima revelam uma interpretação equivocada da legislação de regência das contribuições, ou, em pior hipótese, uma má-fé deliberada do legislador guiada por uma ânsia arrecadatória[9]. Explica-se cada qual.
Primeiramente, cumpre observar o que dispõe o § 2º, inciso II, do art. 3º da Lei nº 10.833, de 2003 citado pela MP no item 03:
Art. 3º Do valor apurado na forma do art. 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:
- 2º Não dará direito a crédito o valor:
II – da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição, inclusive no caso de isenção, esse último quando revendidos ou utilizados como insumo em produtos ou serviços sujeitos à alíquota 0 (zero), isentos ou não alcançados pela contribuição; e
A lei supracitada claramente estipula que não dará direito a crédito de PIS e COFINS o bem ou serviço, considerados em sua totalidade, sobre o qual não tenham incidido as respectivas contribuições.
Todavia, a MP 1.159/2023 trata do ICMS como se fosse um “bem” ou um “serviço” a parte, individualmente considerado. Ou seja, secciona-se o preço de um único produto, separando a parcela que foi ofertada previamente à tributação do PIS e da COFINS da parcela que não o foi (ICMS).
Conforme reiteradamente exposto acima, a não cumulatividade do PIS e da COFINS não possui qualquer relação com o tributo recolhido na etapa anterior, sendo que a exceção estipulada pelo legislador diz respeito, tão somente, ao bem ou o serviço sobre o qual não tenham incidido as contribuições, e não a uma parcela de seu preço.
Ademais, ao vender uma mercadoria ou ofertar um serviço não se repassa ao adquirente o produto somado ao “tributo ICMS”, mas sim o encargo financeiro deste que se incorpora de forma indissociável do preço do produto.
Assim, ao impossibilitar o creditamento sobre encargo financeiro decorrente do ICMS que incidiu sobre a operação de aquisição, o legislador altera o Método Subtrativo Indireto que rege a não cumulatividade do PIS e da COFINS, vinculando-o ao tributo recolhido na etapa anterior, algo típico da metodologia “Imposto contra Imposto”.
Não bastasse, o item 05 da exposição de motivos distorce claramente o que foi estipulado quando do julgamento do RE 576.706, ao sustentar que o “ICMS não integra o preço/valor do produto, visto que apenas transita no caixa das empresas”. Contudo, basta uma breve leitura do acórdão decorrente daquele julgamento para perceber que a tese fixada pelo Pretório Excelso é no sentido de que o ICMS não compõe o FATURAMENTO do contribuinte e não o PREÇO/VALOR do produto, in verbis:
Toda essa digressão sobre a forma de apuração do ICMS devido pelo contribuinte demonstra que o regime da não cumulatividade impõe concluir, embora se tenha a escrituração da parcela ainda a se compensar do ICMS, todo ele, não se inclui na definição de faturamento aproveitado por este Supremo Tribunal Federal, pelo que não pode ele compor a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da COFINS. (pg. 16 e 17 do RE 574.706) – grifos nossos.
Há, portanto, uma clara distorção pela MP 1.159/2023 da tese fixada pelo STF, com o intuito de amoldar a pretensão fazendária de vedar o creditamento sobre a repercussão econômica do ICMS, dissociando este do preço do produto, ao entendimento fixado em sede de repercussão geral.
Em conclusão, de um lado, não é possível desvincular o encargo econômico do ICMS do preço do bem ou serviço ao qual o tributo está atrelado, para fins de aplicação do §2º, II, do art. 3º da Lei n° 10.833/2003. A alteração promovida pela MP 1.159/2023, agora constante na Lei n° 14.592/2023, vale-se de uma lógica própria da sistemática “Imposto contra Imposto” para majorar um tributo sujeito ao Método Subtrativo Indireto.
De outro, a decisão do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que o ICMS não integra o faturamento da empresa, pois apenas transita pelo caixa desta, o que não significa que tal exação não repercuta no valor do produto a ser ofertado e, consequentemente, na despesa / custos do adquirente. Logo, a pretensão fazendária não encontra qualquer amparo no julgamento do RE 574.706.
Pelo exposto, sendo a exclusão do valor do ICMS que incidiu na operação de aquisição da base de cálculo de créditos de PIS e COFINS incompatível com o método subtrativo indireto e com a jurisprudência do Pretório Excelso, entende-se pela ilegalidade da medida. Por fim, ainda que se argumente que a não cumulatividade de tais contribuições foi delegada pela Constituição ao legislador infraconstitucional, deve-se observar o ensinamento de Humberto Ávila de que “o legislador é livre, desde que coerente”[10].
Assim, não cabe ao legislador restringir os créditos de PIS e COFINS, sujeitos a não cumulatividade subtrativa indireta, mediante a aplicação de uma lógica típica da metodologia do imposto contra imposto. Opina-se, portanto, pela ilegalidade da alteração, uma vez que, a não-cumulatividade “mitigada” das contribuições sociais não é um salvo conduto ao legislador para alterar livremente os créditos aos quais os contribuintes têm direito.
[1]Art. 6º A Lei nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 3º …………………………………………………………………………………………………………..
- 2º ………………………………………………………………………………………………………………..
III – do ICMS que tenha incidido sobre a operação de aquisição” (NR)
Art. 7º A Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 3º …………………………………………………………………………………………………………..
- 2º ………………………………………………………………………………………………………………..
III – do ICMS que tenha incidido sobre a operação de aquisição.” (NR)
[2] Art. 2º, caput, das Leis n°s 10.637/2002 e 10.833/2003.
[3] Art. 3º das Leis n°s 10.637/2002 e 10.833/2003.
[4] MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 4ª ed., rev. São Paulo: Noeses. 2020, p. 430.
[5] (PIS/PASEP e COFINS não-cumulativos: conceito de bens e serviços utilizados como insumos na fabricação de produtos destinados à venda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 29/30).
[6] Parecer disponível em: https://gandramartins.adv.br/parecer/reflexo-fiscal-da-contabilizacao-dos-creditos-gerados-pela-sistematica-da-nao-cumulatividade-da-contribuicao-para-o-pis-e-da-cofins-parecer/#:~:text=O%20M%C3%A9todo%20Subtrativo%20Indireto%20consiste,e%20discriminadas%20pela%20legisla%C3%A7%C3%A3o%20tribut%C3%A1ria.
[7] Convertida agora na Lei n° 14.592/2023, conforme já apontado.
[8] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9248191&ts=1685709473539&disposition=inline (Acesso em: 02/06/2023).
[9] O intuito arrecadatório consta, inclusive, na própria exposição de motivos da MP: “10. Conforme Nota Cetad/Coest nº 1, de 4 de janeiro de 2023, a presente proposta provocará os seguintes potenciais impactos orçamentário-financeiro positivos: R$ 4,55 bilhões mensais em 2023; R$ 31,86 bilhões nos sete meses de 2023 (considerando anterioridade nonagesimal e os efeitos arrecadatórios); R$ 57,98 bilhões para 2024; e R$ 61,21 bilhões para 2025.”
[10] ÁVILA, Humberto. O postulado do legislador coerente e a não cumulatividade das contribuições. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2007, p. 183.